Análise Crítica: Universo Desconstruído, vol. 1


Universo Desconstruído, coletânea de ficção-científica brasileira que já chegou em seu segundo volume é, sem dúvidas, pioneira em sua proposta no contexto da literatura de gênero brasileira, uma vez que sua idealização surgiu a partir da intenção de subverter as representações de subordinação das mulheres, como também de gays, trans, lésbicas e negros no interior da ficção-científica. Se a ficção-científica no Brasil ainda conta com pouquíssimas escritoras e com um público leitor majoritariamente masculino, branco e heterossexual, o objetivo de Universo Desconstruído é justamente abrir novos horizontes através da representatividade.
Ao advogar uma literatura de ficção-científica mais diversa, não machista, não racista e não homofóbica, Universo Desconstruído é uma literatura menor no sentido que Deleuze e Guattari empregam o conceito em seu ensaio sobre Franz Kafka, isto é, uma literatura revolucionária, avessa aos códigos literários estabelecidos e que tem como objetivo transformar o próprio modo de ver e sentir, de modo que "uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas sim aquela que uma minoria faz em uma língua maior" (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 25). Nesse sentido, é emblemático o modo pelo qual o modelo hegemônico de ficção-científica, tal qual alimenta as valorações sociais vigentes através de protagonistas masculinos, brancos, fortes e heterossexuais e personagens femininas que são meros objetos de desejo sexual, é subvertido no livro ora pela inversão de papéis, ora pela abordagem de questões de gênero e raça, ora pela simples qualificação da personagem feminina como principal, conferindo-lhe o papel de liderança.
Chamamos ainda atenção para a confusão que a nomeação “menor” pode originar aqui: muitas vezes, a crítica orientada pela literatura de ficção dita “tradicional” considera tudo quanto difere do modelo hegemônico “menor” em termos puramente estéticos; no entanto, fiquemos aqui com a acepção deleuziana do par maior/menor, pela qual a obra menor é aquela que nega a norma em várias dimensões - sendo a estética apenas uma delas - e cria, a partir das limitações da literatura maior, uma literatura do por vir. Destarte, dizer aqui que Universo Desconstruído é uma literatura menor, significa que, do ponto de vista legitimista do mercado editorial, é uma obra que se encontra excluída dos critérios adotados para a seleção. Entretanto, é justamente o embate entre essas forças, isto é, das obras excluídas e daquelas que são selecionadas e perpetuam a tradição, que permite o devir da história literária.
Logo, torna-se compreensível o fato da publicação dos dois volumes ter ocorrido de maneira totalmente independente. Lady Sybylla e Aline Valek, quando se uniram para publicar o primeiro volume, possuíam apenas bons contatos de escritoras e escritores com os quais compartilhavam um propósito comum, a saber, derrubar os preconceitos cristalizados no subgênero literário. Desde a arte da capa aos contos, tudo foi concretizado através de parcerias, voluntariamente. A persistência e a convicção no projeto idealizado foram capazes não apenas de compensar o apoio editorial, mas também de apontar para aquilo que encontrava-se escamoteado nas decisões literárias brasileiras.


Ainda na condição de literatura menor, Universo Desconstruído é também um projeto político, pois à medida que promove a desterritorialização da literatura de ficção-científica, isto é, a desloca de seu lugar de origem e a coloca a favor da representação de autores e leitores que pertencem a etnias, gêneros e classes não valorizados pelo subgênero, acaba por inserir a dimensão política no campo literário. Ao fazê-lo, a ficção feminista retira a aura que pairava sobre o subgênero e coloca a nu seu compromisso com os parâmetros de valoração literária hegemônicos, apontando ainda para outras escolhas literárias possíveis pelo mercado editorial em contraponto àquelas que são sistematicamente privilegiadas. Tal empreendimento não é apenas político, mas revolucionário: ele subverte justamente a tendência que a ficção-científica possuía, até então, de endossar determinados valores tidos como superiores socialmente.
Não obstante, é preciso ressaltar que, embora a coletânea tenha um pano de fundo político por propor uma ficção feminista, os contos não discutem diretamente pautas políticas com as quais suas autoras e autores estão comprometidos. O aspecto político das histórias é sutil e empregado, muitas vezes, no processo de construção das personagens que visam garantir a representatividade de grupos marginalizados socialmente. Cabe ainda destacar que, por ficção feminista, entende-se aqui não apenas contos escritos por mulheres (já que muitas podem escrever de modo a perpetuar as valorações sociais cristalizadas), nem mesmo o comprometimento com pautas elaboradas por uma agência fixa de mulher, mas antes, a preocupação em ultrapassar as valorações sociais hegemônicas, assim como os estereótipos associados ao gênero e a raça e  reiterados pela ficção científica.
É inegável também o fato de que Universo Desconstruído coloca-se à altura de seu próprio tempo, uma vez que tem em vista uma transformação literária espelhada nas próprias tentativas de transformações empreendidas por movimentos sociais e outros atores que atuam politicamente nas sociedades contemporâneas democráticas marcadas pelo pluralismo.  De maneira análoga, na condição de ficção-científica feminista, dialoga com os principais temas em debate no interior da teoria feminista contemporânea, tais como a interseccionalidade de opressões, o aspecto excludente do “feminismo branco”, a dificuldade de homogeneização de identidades múltiplas numa só agência e a desconstrução do gênero, por exemplo. Nesse sentido, alguns dos contos elegem como personagens principais indivíduos de identidades não binárias, tais quais são envolvidos em relações de afetividade distintas daquelas que foram consideradas, até o presente momento, como normativas. É esse o caso do conto escrito por Lady Sybylla, Codinome Electra, cuja personagem principal é uma mulher trans, negra e que possui como traços de personalidade a coragem e a força típicos de uma guerreira.
Justamente por estar à altura de seu tempo, Universo Desconstruído não poderia ter surgido, de fato, do mercado editorial, cujas marcas são a tradição e a repetição. Enquanto a ficção-científica “original” permanece, paradoxalmente, cada vez mais presa ao passado e aos preconceitos consolidados historicamente, a ficção-científica feminista, por sua vez, na condição de menor, ainda ousa verdadeiramente criar; por esse motivo, parece ser aquela que cumpre na atualidade a proposta mesma do subgênero literário, a saber: projetar o leitor para uma realidade futura distinta, mas imanente da sociedade atual, convidando-o a pensar a partir de outra perspectiva sobre a própria realidade. Mais do que apontar para um novo caminho na história da ficção-científica, o caráter revolucionário de Universo Desconstruído é um convite à experimentação e ao estabelecimento de uma nova hierarquia de valores.


Referências Bibliográficas:

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka – por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

Baixe gratuitamente os dois volumes:

http://universodesconstruido.com/




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