Análise Crítica: Kindred, Laços de Sangue

Kindred: Laços de Sangue, publicado por Octavia Butler em 1979, emerge no final de duas décadas de intenso debate sobre a representação da história afro-americana nos Estados Unidos. A academia dos EUA começava, aos poucos, a reconhecer a América como um produto dinâmico de relações complexas entre pessoas de raças, classes e gêneros diversos. Nesse sentido, começava-se a dar relevo àqueles que construíram a história dos Estados Unidos e que encontravam-se, no entanto, sem quaisquer poderes institucionais. Com o estabelecimento do poder intelectual negro no interior da academia, o estudo da história da América também passou a ser o estudo da história Afro-Americana e, os próprios meios de pesquisa foram se modificando à medida que passaram a incorporar narrativas e testemunhos do período escravocrata (Yaszek, 2003, p. 2).


Não apenas a academia passava por um momento de transformação nas décadas de 60 e 70, mas também a cultura comercial, cujos impactos mais observáveis se deram na televisão. A população afro americana começava a ser incorporada pelas instituições comerciais e, o estereótipo da Tia Jemima e do Tio Bean começava a dar lugar a representações mais coerentes aos direitos civis e os movimentos Black Power (ibid.). Alguns comerciais televisivos chegavam, inclusive, a difundir um ideal utópico de igualdade entre negros e brancos. Entretanto, essas imagens oferecidas ao público difundiam também modos muito específicos de compreensão da história da Americana: ao promover uma natureza igualitária das relações de raça na contemporaneidade, implicitamente colocaram a luta por equidade num passado distante ou sem relação direta com o presente (ibid., p. 3). Segundo Yaszek, numa visão adorniana, a empreitada de memorização da história dos EUA, nesses moldes, pode ser compreendida essencialmente como um processo de esquecimento alienador a respeito dos eventos históricos (ibid.).
Assim, embora os modos comerciais de lembrar a história dos Estados Unidos fossem contraditórios aos modos acadêmicos, os dois permaneceram ligados por suas abordagens masculinistas à história.  É nesse sentido que Angela Davis observou em Mulheres, raça e classe que ainda havia, em 1981, um estudo sério da condição da mulher negra durante a escravidão por fazer, uma vez que estas eram, até então, retratadas enquanto seres reduzidos à sua função biológica - como portadoras de filhos - ou apresentadas segundo as convenções de ação de mulher escravizada - submissa, desejante do homem branco e promíscua. Nesse sentido, essa época se caracterizava pela emergência de outro modo de memória que contemplasse seriamente a mulher afro americana (ibid, p. 4).
Um dos objetivos de Butler em Kindred é re-apresentar a memória histórica estadunidense, evidenciando o modo pelo qual a escravidão impactou não apenas indivíduos isolados, mas famílias inteiras e suas relações. Além disso, há também uma forte crítica à figura masculina heroica individualista, já que, mesmo no interior da ficção-científica,  seria impossível sustentá-la através de um personagem negro no contexto das leis da escravidão americana. Segundo Calenti “o tema do seu trabalho parece mesmo ser o da tenacidade dos excluídos perante os desafios que um mundo organizado às suas custas lhe joga a todo momento” (2015). Nesse sentido, Butler não apenas distancia-se de outros autores do subgênero literário, como também aponta para um caminho no qual a ficção-científica pode mais do que apenas revisar a história, mas também a maneira pela qual essa revisão da história pode levar a imaginar o futuro dos oprimidos de outro modo, já que
"… não se trata apenas da necessidade de se ver representado num gênero no qual as vidas de grande parte da população foram sempre relegadas a segundo plano, mas de algo ainda mais importante; trata-se de reivindicar futuros melhores para todo mundo e de construir esses futuros conjuntamente" (Calenti, 2015).


Já na abertura do livro, Butler desafia os mitos e as insuficiências que pairam tanto sobre a academia quanto sobre o senso comum entoado pela publicidade acerca da história de construção dos Estados Unidos: ao retratar o episódio em que Dana, uma jovem que encontra-se com o braço fundido à parede de seu próprio apartamento, Butler provoca questões como “como Dana chegou lá?”, “como isso é possível?”. Ora, essas são questões que deveriam ser realizadas acerca de todos que, ainda hoje, se encontram presos e mutilados por um passado histórico mais cruel do que é possível imaginar e que ainda ecoa no presente. O objetivo de Butler, ao longo de Kindred, é re-apresentar histórias de mulheres afro-americanas, indicando como, de algum modo, essa história se desdobra na contemporaneidade deixando suas marcas àqueles que possuem seu presente diretamente influenciado pelo passado (Yaszek, 2003, p. 1).




O romance se desenvolve, destarte, de modo explicativo à cena descrita inicialmente. Aos poucos, conhecemos Dana: a jovem mulher negra que luta para conquistar uma posição enquanto autora em meados de 1976, na Califórnia. Ela é casada com Kevin, um homem branco, também escritor, alguns anos mais velho. Tanto por parte da família de Dana quanto de Kevin, há resistências para a aceitação de seu casamento - o que evidencia que a convivência harmoniosa entre brancos e negros difundida pela realidade não passa de uma ficção. O casal acabara de se mudar para um apartamento quando Dana passa a ter vertigens e a viajar no tempo.  Nas misteriosas viagens no tempo forçadas, Dana retorna à Maryland do século XIX a fim de salvar a vida de um garoto, Rufus, filho de um senhor de escravos. Aos poucos, Dana não apenas percebe que o que conecta as viagens é proteger a vida de Rufus, como também que ele é um parente distante, de tal modo que sua linhagem familiar depende de sua sobrevivência e que ela deve manter-se atenta para garantir sua própria existência. Há portanto, um paradoxo evidentemente colocado: ou Dana se submete às demandas de Rufus - e, da própria história -, preservando sua linhagem familiar, ou corre o risco de nunca nascer. Tal paradoxo não é colocado à toa: Butler responde a todos os seus colegas negros engajados no movimento Black Power que desejavam o desaparecimento de sua linhagem escrava, mostrando como que o próprio curso da história é inevitável ao desdobramento da busca por novas representações dos Afro-americanos na contemporaneidade.
Enquanto negra do século XX, Dana consegue imaginar os perigos que corre vivendo numa época de escravidão, mas ainda assim, mantém-se esperançosa com as narrativas históricas de fugas em massa de escravos e amparada pelos saberes de seu tempo, de tal modo que, inicialmente, enxerga a si mesma enquanto observadora da história. É aqui que Butler denuncia também a alienação da história inerente à cultura midiática de massa, que impossibilita com que a própria personagem admita a possibilidade perturbadora de que o passado possa ser algo que literalmente a toca. Em uma de suas viagens, ao assistir um escravo sendo açoitado diante de sua família, Dana admite a si mesma que, todas as imagens acerca da escravidão promovidas pela televisão não puderam prepará-la nem tocá-la tanto quanto ver um escravo sendo humilhado diante de sua família, ouvindo o choro de sua filha e sentindo o cheiro de seu suor a cada chicotada. Assim, mediante algum tempo passado em sua vivência no período escravocrata, Dana se dá conta da profundidade de desumanização da época que não ocorre apenas através do açoite, mas em todos os detalhes da organização da vida social para um negro.
À medida que Dana aceita que terá de continuar convivendo com seu passado histórico até garantir a perpetuação de sua linhagem familiar pelo nascimento da filha de Rufus, sua ancestral Hagar, decide-se também que irá ensinar crianças escravas a ler e a escrever, a fim de que essas possam encontrar a liberdade. Mais uma vez, Butler parece denunciar aqui uma das abordagens históricas da escravidão na contemporaneidade, sendo esta propagada pela academia, cujo paradigma de abordagem histórica dos Afro-americanos pairava na literatura de libertação identitária, tal qual encontrava-se associada às narrativas escravas de viés masculinista produzidas no século XIX. Nesse paradigma, a aquisição de habilidades de leitura e escrita pelo indivíduo escravizado são evidenciadas como as mais importantes para a aquisição de liberdade física e psíquica, enquanto outras características identitárias são desprezadas ou apagadas (ibid., p.8).
Quando Dana é pega ensinando crianças escravas a ler e a escrever, Butler  evidencia ainda mais uma das incompreensões acerca da escravidão que pairam na contemporaneidade: ao viajar no tempo, Dana entende-se como um indivíduo solitário que luta contra as forças da história, enquanto aos seus pares, suas ações são absorvidas por redes familiares e comunais, de modo que muitos outros indivíduos sofrem as consequências de suas ações. Após a tentativa frustrada de ensinar às crianças escravas, Dana passa então a buscar uma memória histórica mais apropriada e, é justamente na experiência do Holocausto, distanciada da história de escravidão dos Estados Unidos, que Dana consegue enxergar a própria história da população Afro-americana sem a nebulosidade dos estereótipos criados tanto pela cultura de massa quanto pela academia. É a figura do “outro” estrangeiro que Butler tem em vista como ponto de partida para re-significar a condição da mulher negra nos Estados Unidos, compreendendo-a como o “outro” do patriarcado. À medida que Dana se simpatiza aos judeus e todos aqueles execrados pelo nazismo na Alemanha, passa a perceber também as narrativas nacionalistas criadas sobre "o outro" para expurgá-lo e, mais do que isso, que é preciso lutar para criar a verdade dos marginalizados e excluídos pelos modos dominantes de memória. Ao entrar em contato com a história do Holocausto Judaico, Dana coloca-se fora das restrições da história dominante nos EUA, podendo forjar novamente o passado e seus desdobramentos na contemporaneidade.
Assim, se Angela Davis, por exemplo, parte de um legado marxista-hegeliano que a faz olhar para a história dos EUA identificando suas contradições - e, literalmente, a relação entre senhor e escravo - enraizadas na superestrutura (a economia), Butler parece preocupar-se mais com a complexidade das relações e das próprias identidades. Não à toa, o livro abre com a seguinte frase: “Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco”. É evidente que Butler tem em vista as assimetrias de gênero, raça e classe, mas sua narrativa parece pretender distanciar-se dos estereótipos, dos extremos, de tudo quanto pode homogeneizar alguém a ponto de torná-lo mero objeto - o que a própria escravidão já havia realizado com sucesso, como ela nos lembra bem. Nesse sentido, Dana não é sempre uma heroína. Suas ações são, muitas vezes, frustradas por seu conhecimento digno de 1976 - e inadaptado à “phronesis” necessária para a sobrevivência no século XIX - e motivadas, em grande parte, pelo interesse egoísta de sua própria sobrevivência, mesmo que tenha em vista proteger seus irmãos de cor quando pode.
Nesse sentido, por vezes Dana tem de se submeter aos caprichos de seu senhor e colocar-se ao seu lado a fim de preservar a própria vida. Para tanto, se vê imersa em situações em que tem de convencer outra escrava a ser “passivamente” estuprada para que Rufus não tenha de usar da violência. É então que Dana passa também a ser lida pelos próprios escravos como “preta branca”. Entretanto, numa conversa de Dana com Carrie - a mulher e escrava muda, triplamente diferente dos estereótipos encontrados na história americana -, que insiste que ninguém pode determinar sua identidade de fora, Butler evidencia a importância de compreender a situação da mulher Afro-americana fora dos reducionismos promovidos pela memória histórica dominante. Não somente Dana, mas também outros personagens que entremeiam a história estão imersos em relações de poder que não permitem julgamentos valorativos apressados, nem identidades prontas: a maestria de Butler está, justamente, em evidenciar a maneira pela qual as situações particulares e as potências nelas imbricadas moldam os personagens. Destarte, ainda que letrada e protetora de Rufus, Dana não torna-se, por isso, branca. Butler nos mostra, pouco a pouco, como as próprias categorias construídas em contradições e pares de opostos não conseguem abarcar a realidade complexa. Assim faz Butler também em relação aos estereótipos: depois que Dana aprende com Carrie que sua identidade não pode ser moldada de fora, torna-se também potente em suas próprias ações e não se deixa mais à condição de vítima da história.
É então que Dana passa no romance a tomar efetivamente as rédeas de seu destino: após o suicídio de Alice, escrava e mãe dos filhos de Rufus, esse tenta substituir Alice por Dana, tentando estuprá-la. Dana afirma a si mesma que pode aceitar a determinação histórica de Rufus como seu ancestral, mas não como amante - diferentemente do final apropriado a muitas narrativas contemporâneas sobre a escravidão que, mesmo reconhecendo a subordinação forçada e violenta das mulheres negras aos homens brancos, forjam anedoticamente sentimentos de desejo e amor por parte das mulheres negras por seus senhores. Ao matar Rufus e recusar ser estuprada, a personagem de Dana apresenta, finalmente, uma revisão histórica da condição das mulheres negras satisfatoriamente emancipatória.
Por fim, é preciso atentar ainda que nas páginas de encerramento de Kindred Butler sugere que uma revisão histórica da condição das mulheres negras não ocorre sem mudanças significativas aos indivíduos que, de alguma maneira, pertencem a esse legado histórico. Ainda que lance mão de artifícios próprios da ficção-científica, como a viagem no tempo, Butler tem em vista não apenas fazer uma revisão histórica satisfatória da condição das mulheres negras no período escravocrata, como também indicar como mulheres como Dana possuem suas vidas marcadas por essa mesma história (Yaszek, 2003, p. 11): antes de morrer pelas mãos de Dana, Rufus agarra seu braço e Dana retorna à contemporaneidade com o braço fundido à parede de seu próprio apartamento. É nesse sentido que Haraway afirma que
Todo o trabalho de Butler como uma escritora de ficção científica é fixado na questão da destruição e do difícil florescimento - não apenas sobrevivência - no exílio, diáspora, abdução e transporte - o dom e o fardo dos descendentes de escravos, dos refugiados, imigrantes, viajantes e dos indígenas também. (Haraway, 2013, p.140 apud. Calenti, 2015).

Já no epílogo de Kindred, Butler reforça mais uma vez a necessidade de ir além da memória histórica oficial e permeá-la de crítica: ao buscar registros históricos sobre Maryland e o desfecho daqueles que habitavam a propriedade dos Weylin, família de Rufus, tudo o que encontra é a notícia de um incêndio que matou Rufus. A partir da perspectiva histórica que possui, Dana recria os acontecimentos, concluindo que seu amigo escravo Nigel ateou fogo no local em que Rufus fora morto para apagar as provas do crime que ela havia cometido e que, provavelmente os filhos de Rufus - entre eles, sua ancestral Hagar - foram cuidados pela mãe do rapaz. Sua conclusão, em contrapartida à narrativa oficial, só pode ocorrer justamente porque Dana tem em vista o testemunho e a perspectiva daqueles que permaneceram silenciados pela história. Ainda que não possua memória ótica dos fatos que se sucederam após a morte de Rufus e que não seja possível à personagem principal a certeza dos acontecimentos, Dana possui mais do que um registro jornalístico ou acadêmico; pelo contrário, a fonte cultural da qual se serve é a memória individual, marcada em seu próprio corpo. Essa lhe permite então criar sua própria representação das mulheres negras na América a partir de um viés emancipatório (Yaszek, 2003, p. 12). Para Calenti, Octavia realiza mesmo a potencialidade da ficção científica, uma vez que toma para si a tarefa de “pegar os problemas do presente e delirá-los, explorar suas potencialidades ao máximo, enchê-los de intensidade para podermos fazer, nesse grande panorama, buracos, traçar linhas de fuga” (2015).

As mulheres negras se encontram emancipadas nos dias de hoje?

Assim como Octavia Butler, Angela Davis - filósofa negra norte-americana -, também se debruçou sobre a condição da mulher negra nos Estados Unidos nos anos oitenta, tendo como estímulo de pesquisa a negligência da academia que ainda perpetuava estereótipos e negligenciava um estudo sério da afro-americanas em detrimento de uma abordagem histórica masculinista. Tendo isso em vista, Davis, que também foi militante do Partido Comunista dos Estados Unidos e dos Panteras Negras (que defendiam os direitos da comunidade negra a fim de impedir espancamentos policiais), publicou em 1981 Mulheres, raça e classe, obra na qual faz um levantamento do legado da escravidão nos Estados Unidos e das relações de trabalho no período pré-guerra civil. Para a filósofa, essas formas históricas de trabalho ocupados pela população negra são determinantes para a compreensão de sua condição na contemporaneidade, especialmente a das mulheres negras. Para além disso, Davis leva em conta a interseccionalidade de fatores, tais como o gênero, a classe e a raça, que impõe especificidade na análise das possibilidades de emancipação.


Nesse sentido, é a compreensão da situação da mulher negra durante a escravidão que traz, para Davis, esclarecimentos sobre a luta atual das mulheres negras e de todas as mulheres em busca de emancipação. Assim como Butler, Davis constata que uma revisão histórica a contrapelo da situação das mulheres negras permite compreender como essa história ainda reverbera nos dias atuais. O primeiro diagnóstico realizado pela filósofa é o de que o espaço enorme que o trabalho ocupa no dia-a-dia das mulheres negras reproduz um papel estabelecido na escravidão. Além disso, a ideologia da feminilidade, responsável pela retirada das mulheres do mercado de trabalho, nunca atingiu as mulheres negras - essas sempre trabalharam na mesma proporção que os homens. Para Davis, foi justamente a consciência de sua força e resistência que permitiu a essas mulheres ter "a confiança na sua capacidade para lutar por si mesmas, pelas suas famílias e pelo seu povo" (Davis, 2013, p. 15). Assim, se por um lado o trabalho sempre ocupou a maior parte da vida das mulheres negras, desde a escravidão, essas não estavam, por outro lado, "rebaixadas nas suas funções domésticas do mesmo modo que as mulheres brancas se tornaram" (ibid., p. 19). Pelo contrário, o trabalho doméstico durante a escravatura representava justamente o laço entre homens e mulheres, já que nele as tarefas eram divididas não hierarquicamente, já que este era também o mais significativo aos afro-americanos, uma vez que não tinha como objetivo servir ao senhor de escravos.
De modo análogo a Butler, Davis propõe uma revisão histórica com o objetivo de findar estereótipos e negligências que pairavam sobre a mulher negra. Contradizendo, portanto, a representação da mulher negra como gentil, frágil, promíscua e dotada de instintos maternais, Davis recolhe na história experiências de mulheres que trabalharam sob o chicote de seus senhores, protegeram suas famílias, foram violadas e açoitadas, mas nunca aceitaram a condição de dominação:
Foram essas mulheres que passaram para as suas descendentes nominalmente livres um legado de trabalho pesado, perseverança e auto resiliência, um legado de tenacidade, resistência e insistência na igualdade sexual - resumindo, um legado que fala das bases de uma nova natureza feminina (ibid., p. 29).
Não obstante, se Butler e Davis concordam que a revisão histórica da condição da mulher negra permite reivindicar futuros melhores, o diagnóstico de Davis, concomitante à crítica à academia e mesmo à cultura de massa, é o de que a emancipação da mulher negra ainda se encontra num horizonte distante, mesmo após décadas de “libertação” da condição escrava. Isso porque mesmo depois de um quarto de século dessa liberdade, grande parte das mulheres negras continuava a trabalhar no campo, na cozinha ou na lavanderia. Mesmo as que trabalhavam na indústria, tinham os trabalhos mais mal pagos (ibid., p. 67). Além disso, a locação de trabalhadores condenados fez com que homens e mulheres negros fossem presos sob os menores pretextos, de modo que tanto empregadores quanto autoridades estatais possuíam um intrínseco interesse econômico em aumentar a população negra na prisão.
Um dos símbolos da escravatura, o trabalho doméstico e sua respectiva ocupação por mulheres negras, não parece ser passageiro, assim como os abusos sexuais a ele referentes:
“Logo que me instalei como cozinheira, ela caminhou na minha direcção, atirou os seus braços à minha volta, e estava pronto a beijar-me, quando eu disse que queria saber o que queria, e empurrei-lhe. Eu era jovem então, recém-casada, e não sabia o que foi o fardo para o meu pensamento e coração desde então: que a virtude da mulher negra nesta parte do país não tinha protecção” (ibid., p. 69).

Foi justamente a vulnerável condição das trabalhadoras domésticas que, por muito tempo, alimentou os mitos relacionados à promiscuidade das mulheres negras. Além disso, a definição tautológica de "criada" como "mulheres negras" também justifica o fato de que o salário recebido por uma mulher branca na condição de doméstica sempre foi fixado pelo critério racista e, por isso mesmo, o mais baixo entre as demais ocupações sociais. No entanto, se o trabalho doméstico era uma opção às mulheres brancas, as mulheres negras estavam aprisionadas nessa condição. Mesmo as feministas brancas que lutavam por direitos trabalhistas das mulheres, frequentemente não preocupavam-se com o trabalho doméstico, já que esse era ocupado, sob uma ótica racista, por seres não humanos.




Segundo Davis, nos censos de 1940 dos EUA, 59,5% das mulheres negras e empregadas eram trabalhadoras domésticas e 16% permanecia no trabalho nos campos, de modo que "depois de oito longas décadas de 'emancipação', os sinais de liberdade eram sombras tão vagas e tão distantes que era difícil vislumbrar esses sinais de liberdade" (ibid., p 74). Ora, se por um lado a revisão histórica da condição da mulher negra, como proposta por Butler e Davis, permite criar uma representação emancipatória pelo resgate das características de luta e resistência permanente, é preciso ainda combater a ideologia racista dominante da população negra como incapaz de progressos intelectuais, a fim de que o trabalho doméstico, enquanto tarefa alienadora, repetitiva e que tem sobretudo a função de afirmar a desumanização da população afro-americana e mantê-la afastada das instituições sociais reconhecidas e valorizadas na sociedade capitalista, deixe de ser a regra para as mulheres negras.

Referências Bibliográficas
Calenti, Carlos. Octavia Butler, Afrofuturismo e a necessidade de criar novos mundos. In. AFROFUTURISMO: Cinema e Música em uma Diáspora Intergalática, Caixa Cultural, São Paulo, 2015.
Davis, Angela. Mulheres, Raça e Classe.
Yaszek, Lisa. "A Grim Fantasy": Remaking American History in Octavia Butler's Kindred. In. Signs: Journal of Women in Culture and Society, 2003, vol. 28, no. 4.

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