Análise Crítica: O Conto da Aia

Por Caroline H. Batagini

O Conto da Aia, de Margaret Atwood, foi publicado em 1985 no Canadá. Trata-se de um romance distópico narrado em primeira pessoa - recurso que permite à autora uma exploração bem sucedida da profundidade psicológica da personagem - e de caráter altamente descritivo. Vencedor do prêmio Arthur C. Clarke Award, a obra proporcionou à Atwood o reconhecimento de seu talento em seus “passeios” por diversos gêneros literários, entre eles, a ficção-científica. A celebridade do romance na atualidade resultou na adaptação do livro para uma série de TV pela Hulu em 2017, cujo nome é o mesmo do livro original - The Handmaid's Tale. Nesse sentido, é possível dizer que O Conto da Aia emergiu em dois momentos distintos, isto é, aquele de sua primeira publicação no Canadá e novamente em 2016.
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Pode-se dizer que no primeiro momento do surgimento da obra, isto é, na data de sua publicação, O Conto da Aia respirava a atmosfera política da época: tenha Atwood sido ou não contaminada pelos ideais da Segunda Onda do Movimento Feminista que se espalhava dos EUA para o mundo, o fato é que a obra incorpora muitas das reivindicações feministas da década de 80. A Segunda Onda do Movimento Feminista, que ocorreu entre 1960 até 1985, ampliou a gama de questões da primeira onda - tal qual tinha como pauta o sufrágio e os direitos legais de participação política de mulheres -, dando relevo para pautas como a da violência doméstica sofrida pelas mulheres, a desigualdade latente entre homens e mulheres no mercado de trabalho, o debate sobre a concepção compulsória, além de problematizar os papéis de gênero estereotipados e limitantes que, no caso das mulheres, as reduzia a meras servas dos homens e executoras de tarefas domésticas. Ao longo de suas 366 páginas, O Conto da Aia acaba por remontar todas as opressões não apenas discutidas na época pelo movimento feminista, mas também todas as opressões reais já cometidas contra mulheres ao longo da história. Nesse sentido, o romance é quase um convite para o leitor refletir sobre a ligação intrínseca entre política, direito e sexo. Não à toa, o livro "renasceu" na atualidade: com a eleição de Donald Trump nos EUA em 2016, diversas passeatas promovidas pelos movimentos feministas do país aludiram ao Conto da Aia como uma distopia que não deve ser posta em prática.
No entanto, não é apenas ao cenário social de seu tempo que Atwood mostra atenção, mas também à realidade econômica e ambiental das sociedades contemporâneas marcadas pela industrialização e pela promessa distópica. Isso porque, no romance, a consolidação da República de Gilead deve-se a um histórico de baixa dos índices de natalidade caucasianos provocado por diversos fatores, como acidentes em usinas nucleares, vazamentos de estoques de armas químicas, depósito inadequado de lixo tóxico, o uso descontrolado de inseticidas e herbicidas que são causas de bebês natimortos ou com deformidades genéticas, epidemias como sífilis e aids que promovem a eliminação cada vez mais latente de jovens sexualmente ativas, controle da natalidade, etc. É nesse cenário que um golpe de Estado toma o poder como promessa de salvação, instaurando um regime totalitário fundamentalista sob as bases do poder patriarcal e da estratificação social. Na nova República de Gilead, os judeus são obrigados a partir do país, assim como são criadas "colônias" de elevado nível de radiação para aqueles que se opõem ao regime ou são considerados avessos à ideologia imposta - como gays, mulheres jovens que não podem reproduzir, adúlteras e feministas. Toda a mídia passa a ser controlada pelo governo e é promovida a abolição das Universidades, livros e quaisquer meios de informação ou veículos de conhecimento que não corroborem com o Estado teocrático.
Na ambientação desse cenário distópico, a atenção de Atwood recai justamente sobre a situação de opressão das mulheres, uma vez que toda a trama é apresentada ao leitor sob a ótica de Offred. A personagem principal tem 33 anos e é uma serva da República de Gilead na condição de Aia, tal qual tem apenas uma função: procriar. Para tanto, Offred fora separada de seu marido e sua filha, sendo propriedade de um dos comandantes da República. A ameaça latente de se tornar uma não-mulher e ir parar numa das colônias permeia o imaginário de Offred, assim como o paradeiro de sua família. Entretanto, assim como todas as mulheres de Gilead, Offred não tem outra opção senão obedecer. Na condição de Aia, não possui quaisquer direitos sobre seu próprio corpo, quem dirá direitos políticos.
Em Gilead, as Aias são as mulheres em idade de procriação, cujos corpos são, em verdade, propriedades da República e designadas aos homens de alto escalão, os comandantes. Na condição de objetos, as Aias não podem manter seus antigos nomes: todas elas são nomeadas segundo o comandante a que pertencem, de modo que Offred significa "of Fred". Assim, cada comandante que possui uma esposa que não pode mais ter filhos, pode ter em sua posse Aias que, em uma “cerimônia”, são estupradas a fim de procriar. Aquelas que não procriam em um período determinado passam a ser consideradas não-mulheres e são mandadas às colônias. Além das Aias, as casas dos comandantes têm ainda as Marthas, mulheres geralmente mais velhas que não podem mais reproduzir e ficam incumbidas das tarefas domésticas. A responsabilidade tanto das Aias quanto das Marthas é das Esposas do comandante que, mesmo oprimidas, ocupam o mais alto escalão entre as mulheres, já que são responsabilizadas por vigiar e punir as Aias e Marthas. Tratadas como objetos, as mulheres diferenciam-se entre si através das vestimentas, tais quais seguem um padrão segundo a posição em que cada uma ocupa: as Aias vestem um vestido longo que cobre todo o corpo vermelho, assim como um chapéu de longa aba branca que impede os homens de ver seus rostos. As Marthas, por suas vezes, usam vestes verdes, enquanto as esposas dos comandantes são aquelas que possuem mais regalias e peças mais luxuosas.

“Como sabiam os arquitetos de Gilead, para instituir um sistema totalitarista eficaz, ou, de fato, qualquer sistema, seja lá qual for, é preciso que se ofereçam alguns benefícios e liberdades, pelo menos para uns poucos privilegiados, em troca daqueles que se retiram” (Atwood, 2017, p. 362)

Desde as Aias até as Esposas, todas as mulheres tiveram seus direitos confiscados em Gilead, em maior ou menor grau. No início, a instauração da República demitiu todas as mulheres de seus postos de trabalho, assim como bloqueou suas contas bancárias para que perdessem sua independência financeira; depois, separou algumas de suas famílias, levando-as para um centro de conversão. Por fim, foram entregues como propriedades de um comandante. No fundo, o que Atwood parece pretender demonstrar com sua distopia é que, embora homens e mulheres sejam oprimidos em sociedades profundamente desequilibradas politicamente, as opressões sofridas por mulheres são sempre em função do sexo. Nesse sentido, apenas as mulheres sofrem opressões como o estupro, a classificação de sua “função” pela vestimenta, a consideração de seu corpo como propriedade de um homem, a concepção compulsória, a desqualificação de sua força de trabalho no mercado e a consideração de todas aquelas que se negam a cumprir os papéis de gênero atribuídos socialmente como não-mulheres.
Esta relação entre sexo, direito e política explorada por Atwood em O Conto da Aia e que é evidenciada com a descrição da República de Gilead, onde homens são estratificados socialmente a partir de seu poder de dominação em relação às mulheres, é também uma pauta caríssima da Segunda Onda do Movimento Feminista que se estruturou na mesma época de publicação do romance. Cabe lembrar aqui de Carole Pateman, filósofa feminista e teórica política que escreveu O Contrato Sexual em 1988 nos EUA, no qual afirma que na sociedade civil moderna, onde se exaltam princípios como os da “liberdade, igualdade e fraternidade”, nenhum homem é bom o suficiente para ser o senhor de outro homem, mas todos são bons o suficiente para ser senhores das mulheres (PATEMAN, 1993, p. 322). Sendo assim, há, segundo Pateman, não apenas um contrato social firmado na modernidade, mas ainda, um contrato sexual que legitima o domínio das mulheres pelos homens e que é vigente até então. A liberdade política garantida pelo contrato diz respeito somente aos homens, enquanto as relações entre os sexos e a esfera privada são consideradas apolíticas. O “indivíduo” não corporificado nos textos dos contratos sociais, tal qual goza de liberdade civil e política é, na verdade, o corpo masculino. Por outro lado, os contratos dos quais as mulheres tomam parte são sempre em torno de seus corpos - basta tomar como exemplo o casamento, a prostituição e a gestação de aluguel: “As mulheres podem alcançar a condição formal de indivíduos civis, mas corporificados como seres femininos; nós nunca somos ‘indivíduos’ no mesmo sentido que os homens o são” (PATEMAN, 1993, p. 329).


A tese de Pateman é, em suma, que ao tornar a esfera do sexo apolítica, privada, o contrato social moderno consegue manter a subordinação das mulheres e ainda chamá-la de liberdade. Para a filosofa, assim como no romance de Atwood, as opressões sofridas por mulheres são sempre em função do sexo e irredutíveis a a meras questões de violência ou de livre acesso ao trabalho, por exemplo.
“Minha nudez já é estranha para mim. Meu corpo parece fora de época. Será que realmente usei trajes de banho, na praia? Usei, sem pensar, entre homens, sem me importar que minhas pernas, meus braços, minhas coxas e costas estivessem à mostra, pudessem ser vistas. Vergonhoso, impudico. Evito olhar para baixo, para meu corpo, não tanto porque seja vergonhoso ou impudico mas porque não quero vê-lo. Não quero olhar para alguma coisa que me determine tão completamente” (Atwood, 2017, p. 78)
Além disso, tanto Pateman quanto Atwood acabam mostrando, cada qual em sua especificidade estilística e literária, que a explicação da subordinação das mulheres pelos homens é sempre pautada ora num argumento naturalista-biológico, ora teológico. Se Atwood nos mostra como o argumento sociobiológico da poligamia masculina pode convergir perfeitamente bem com um Estado teocrático conservador, Pateman, por outro lado, alerta para a incoerência dos contratualistas que denegam o argumento naturalista no que tange à construção do contrato social - estabelecido entre os homens e pautado em bases unicamente racionais - embora o aceitem amplamente quando necessitam justificar as diferenças políticas entre os gêneros.
Ainda em relação ao Conto da Aia, é louvável também a sensibilidade de Atwood em captar a contradição intrínseca à cultura do estupro e escancará-la ao leitor por meio da situação fictícia de Gilead: embora as mulheres sejam classificadas socialmente segundo a função desempenhada por seus corpos na sociedade patriarcal, assim como se costuma dividir eletrodomésticos segundo sua função nas prateleiras das lojas, e vestidas de modo que o mínimo de seus corpos fique à mostra, ainda assim a culpa dos adultérios e dos abusos sexuais é atribuída às Aias. O argumento da "escolha" da submissão sexual vigente nas sociedades contemporâneas também é falsificado pela canadense de modo explícito: como escolher em situações nas quais as opções são estupro ou morte?
“Minha saia vermelha é puxada para cima até minha cintura, não acima disso. Abaixo dela o Comandante está fodendo. O que ele está fodendo é a parte inferior de meu corpo. Não digo fazendo amor, porque não é o que ele está fazendo. Copular também seria inadequado porque teria como pressuposto duas pessoas e apenas uma está envolvida. Tampouco estupro descreve o ato: nada está acontecendo aqui que eu não tenha concordado formalmente em fazer. Não havia muita escolha, mas havia alguma, e isso foi o que escolhi” (Atwood, 2017, p. 115)
Por fim, vale lembrar que Atwood explora com maestria a sensação de catarse que a obra pode provocar, principalmente, no público feminino. Isso porque a narrativa dos próprios pensamentos por Offred não só converge com o imaginário das leitoras que experimentam se colocar na própria situação da personagem como também remonta às experiências generalistas de opressão sofridas por mulheres em diferentes contextos. Nesse sentido, a leitura de O Conto da Aia torna-se, por vezes, angustiante e melancólica. No entanto, as poucas ocorrências de solidariedade entre as mulheres presentes na obra são capazes de trazer à tona ao leitor esperanças acalentadoras e um sentimento utópico de união das mulheres numa agência comum pela reivindicação de sua emancipação. Não obstante, Atwood não deixa de lembrar ao leitor que ainda há muito por lutar através do último capítulo do livro: anos após a catástrofe de Gilead, as palavras das mulheres continuam sendo postas sob dúvida e as atrocidades cometidas pelos homens são consideradas justificáveis contextualmente e culturalmente.

Referências Bibliográficas:

ATWOOD, Margaret Eleanor. O conto da aia. Trad. Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
PATERMAN, Carole. “O fim da história?” In. O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, pp. 322-342.

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